18.3.10

São os olhos

Um senhor que julguei ter morrido, voltou á antiga sapataria onde me habituei a vê-lo exponencialmente com um olhar rápido por entre a porta encostada. Infelizmente não se trata de um regresso glorioso de quem, como costumamos dizer, envelheceu com dignidade e venceu muitos dos contras que esta acarreta. Ou será envelhecer com dignidade, lidar naturalmente com esses problemas ao invés de tentar evitá-los artificialmente? Deve ser isso. Não é a altura indicada para falar disto. Adiante. Digo que julguei o senhor morto pois a tal sapataria esteve bastante tempo fechada e ele sendo já velho, juntei um mais um... mas enganei-me.

De pequenas proporções, aquele estabelecimento transmite um sentimento qualquer entre tristeza e solidão. E só não me atrevo a dizer de claustrofobia, porque este homem parece fazer parte da mobília. Estores fechados por entre grades de metal, barram a entrada aos primeiros raios de sol primaveris. Lá dentro tudo adquire uma cor empastelada, de um monótono castanho, um melancólico azul-escuro ou algo muito perto da quase penumbra.

Permanece sentado no que parece ser uma cadeira de rodas. Tira um lenço para limpar o nariz. À sua frente vejo uma gaiola grande no chão. Não reparei se haviam pássaros lá dentro. Deve estar ali para passar o tempo. Talvez tire daquelas horas, algum prazer. Ultimamente tenho visto uma senhora lá dentro, que duvido muito que seja sua cliente. Não me lembro sequer de ver clientes lá dentro para ser franco. Ela deve estar encarregue de vigiar este senhor. Acho que é sua filha. Fixa um ponto no exterior e para ele olhará o resto do dia de forma tão distante como daqui a uma galáxia com vida ainda por descobrir. Óculos de massa e vestuário preto contrastam grandemente com a clareza angelical da sua pele. Porque se veste de preto? Estará de luto? O tempo naquela loja só parece passar porque o Sol e a Lua lá mantêm a incansável dança a que estão destinados.

Não me é estranho este cenário, lembra-me o meu avô que teve demência. São os olhos. São os olhos de quem já ali não está. Os olhos de quem já só espera o definhar do corpo para que se possa finalmente libertar. Os olhos de quem aguarda sem saber, que a morte cumpra o seu dever.

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