8.8.10

"O autor está no livro todo"

(...)"argumento que entre um quadro e a pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor, e portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos Cegos, o que se me responde é que, sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras que as traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer ignorar o facto, fundamental no meu entender, de que não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã do computador, que ambas são, com adestramento e eficácias similares, prolongamentos de um cérebro, ambas instrumentos mecânicos e sensitivos capazes de composições e ordenações sem mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia.

(...)

A pergunta que me faço é se a obsessiva atenção dada pelos analistas de texto a tão escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes especulações teóricas, não estará a contribuir para a redução do autor e do seu pensamento a um papel de perigosa secundariedade na compreensão complexiva da obra. Quando falo de pensamento, estou a incluir nele os sentimentos e as sensações, as ideias e os sonhos, as vidências do mundo exterior e do mundo interior sem as quais o pensamento se tornaria em puro pensar inoperante. Abandonando qualquer precaução retórica, o que aqui estou assumindo, afinal, são as minhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a identidade real da voz narradora que veicula, nos livros que tenho escrito e em todos quantos li até agora, aquilo que derradeiramente creio ser, caso por caso e quaisquer que sejam as técnicas empregadas, o pensamento do autor, seu próprio e exclusivo (até onde é possível sê-lo) ou deliberadamente tomado de empréstimo, de acordo com os interesses da narração.

(...)

Que fazemos, em geral, nós os que escrevemos? Contamos histórias. Contam histórias os romancistas, contam histórias os dramaturgos, contam histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história. As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde o levantar da cama, pela manhã, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que ao sonho tentaram descrever, constituem uma história com uma coerência própria, contínua ou fragmentada, e poderão, como tal, em qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita. O escritor, esse, tudo quanto escreve, desde a primeira palavra, desde a primeira linha, é escrito em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes escondida - porém, de certo modo, visível e óbvia, no sentido de que ele está sempre obrigado a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos que sejam comuns a ambos, para chegar finalmente a algo que, querendo parecer novo, diferente, original, já era afinal conhecido, porque, sucessivamente, ia sendo reconhecível.

(...)

(...)em minha opinião, e a despeito do que, no texto, se nos apresenta como uma evidência material, a história que ao leitor mais deveria interessar não é a que, liminarmente, lhe é proposta pela narrativa. Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração - um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. Pergunto-me até se o que determina o leitor a ler não será uma secreta esperança de descobrir no interior do livro - mais do que a história que lhe será narrada - a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor. Tal como o entendo, o romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista. Com isto não pretendo sugerir ao leitor que se entregue durante a leitura a um trabalho de detective ou antropólogo, procurando pistas ou removendo camadas geológicas, ao cabo das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, se encontraria escondido o autor...
Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor.

(...)

O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal. Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar.

(...)

Bem vistas as coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto. Omniscientemente. 

Quanto ao narrador, que poderá ele ser senão uma personagem mais de uma história que não é sua?"

José Saramago, 1997. Revista LER

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