4.11.10

A conservação do sonho

É certo que o cansaço, consequência de uma noite mal dormida em cama estranha, o fustigava agora na segunda viagem do dia. No entanto, soube reconhecer a importância do desenrolar de acontecimentos. Recompôs-se assim que saiu da carruagem que ia cheia de vazio, três ou quatro pessoas tiravam o pó aos bancos. Despediu-se do comboio como se de uma casa se tratasse. O número mínimo de passageiros permitiu-lhe essa personalização. Cada passo era dado em direcção à memória. O corpo movia-se num torpor mecânico. Considerado estrangeiro pela documentação oficial, estava apenas de passagem é verdade, mas não era assim que se sentia. Fosse pela concretização de um sonho sonhado à infinitude, ou por uma qualquer empatia de difícil definição, certo era, que a palavra exclusão não fazia eco no seu interior. Continuou rumo a norte, levando como companheira uma imagem impressa na mente. O motivo da sua visita ao país do sol nascente, não era propriamente o aparato da celebração nacional como pôde testemunhar na primeira viagem, foi antes a busca pela essência que agiu como potenciadora. Incomodava-o aliás, toda aquela festividade barulhenta. Recordou alguns dos acampamentos montados há mais de uma semana, na garantia de um bom lugar para assistir à queda centenária. Desejava o recato de uma montanha anónima. Queria viver a experiência dos ancestrais da forma mais original quanto possível. E mais solitária também. O vento frio que se fazia sentir no norte do país mantinha tardio o desabrochar das flores desejadas. Podia permanecer calmo baseando-se nesse simples facto. Não teria de se apressar, bastava encontrar uma estalagem algures na montanha a noroeste, e esperar. Esperar que chovessem diamantes do céu.

Precisamente uma semana depois, não tornou a dar uso ao casaco que até aí o acompanhou. Sinal de tempos mais amenos.  Ao seu redor, tudo começou a ganhar contornos à medida que o Sol nascia. Desde que se instalou naquela pousada que albergava apenas quatro ou cinco quartos, que manteve a rotina do mesmo caminho, todos os dias com mira num local a uns dois quilómetros dali. Longe de tudo. Imerso no nada em que a natureza o preenchia. Perto da perfeição, aquele local dava um significado profundo à palavra recato. Um planalto verdejante, envolto por três escarpas rochosas, e no sítio onde se adivinharia a quarta, tal qual a boca de uma janela, estava uma abertura imensa com vista para o resto da montanha pintalgada no fundo com vestígios de civilização. Sentou-se no sopé, de costas para uma das escarpas e observou demoradamente os tons de cor que se transformavam de forma subtil com o aparecimento da primeira luz. Aguardou com esperança redobrada até que sentiu uma rajada. Manteve os olhos abertos em lua cheia. Um segundo sopro. Foi como o quebrar de correntes. Uma onda de pétalas percorreu o céu, pintando-o de rosa e branco. As árvores dispersas pelo planalto sem ordem ou intenção, eram provavelmente resultado do atirar aleatório de sementes por alguém que tinha o costume de ali comer cerejas. A beleza intocável. Distante. Efémera. Correu como o louco que sabia ser. Deitou-se por fim com as forças esgotadas e ficou em contemplação do rio que corria no céu. Era como retroceder no tempo. Uma segunda oportunidade à disposição da vontade. Estava na altura de ficar.

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