21.11.10

O dilema da livreira

Podia jurar que algo estava para acontecer. Adivinhara até então, sem grande rigor porém, os traços do seu carácter com base no padrão de leitura. Não mais. "São ideias minhas. Porque hei-de estranhar os temas que lhe aguçam agora a curiosidade?" matutou ela. Notou também, que a sua indecisão que caracterizava os momentos que antecediam a compra de um livro, se dissipara com os meses. Entrava na livraria cada vez mais seguro do que pretendia levar consigo. Cada vez mais pálido, com umas olheiras e marreca maiores também. O sorriso parecia ter sido levado com o vento frio, e se a rapidez da decisão se fazia notar, também a tremulação da voz com que o dizia, despertara a sua atenção. Nunca ousou questionar pormenores da vida dos clientes, sempre lhes dirigira uma palavra amiga que pairava no ar e dava bom ambiente à loja. Se pelo rumo da conversa as suas vidas eram tema, só aí, e teriam de ser eles a dar o primeiro passo, ela dava continuidade. Não por pudor de falar de si, mas por respeito. Não gostava de forçar a intimidade, esta tinha de surgir naturalmente. Mas a vida deste homem, corroía-a na dúvida. Deixou a fervorosidade de lado e manteve o código pelo qual sempre se regeu. A palavra bem disposta àquele homem passou a destoar, e estava convencida de que já não valia a pena tentar arrancar-lhe um sorriso, pelo que se limitava a dizer "boa noite" com disposição falseada. As visitas passaram a ser mais frequentes, mantendo a mesma brevidade no entanto. Era óbvio que o homem devorava os livros. Conseguia imaginá-lo à noite a ler de forma esquizofrénica. As olheiras não seriam só das más horas a que finalmente repousava a cabeça na almofada, mas também da qualidade do seu sono. Aquela não era literatura de cordel e tampouco favorável a sonhos cor-de-rosa. "Isto supera a simples curiosidade. Que faço eu sem parecer uma completa lunática? E se estiver a ser? E se tiver de ser?". Por contraste as coisas se notam. Se fazem notar. Para ela, este contraste era claro como breu. Fácil de ver, mas difícil de entender. Menos de duas semanas e lá estava ele novamente. Um novo pedido. Livro de capa preta. "Aí o tem" disse-lhe como se se encontrasse diante de um espírito, olhando-o muito profundamente, tremendo na vontade ardente de entendimento, quase a devorar a sua carne. Um canibalismo perscrutante. "Obrigado" disse ele. Deixou a porta entreaberta na saída. Observando-o a afastar-se da loja, contraiu o maxilar como que a prender o grito que lhe fugia das profundezas. O homem saíra a meia hora do horário de encerramento, e sem pensamento prévio mas objectivo, ela aproveitou o sucedido e com a chave deu as últimas voltas à fechadura da loja. Nos instantes em que o fez, perdeu-o de vista. Recordou-se que o vira há uns dias a curvar a segunda rua à direita. Correu guiada pelo mapa mental. Avistou-o à distância, e manteve-a. Nada nele chamava a atenção. Caminhava de forma normal, se bem que lhe conseguia sentir o nervosismo à distância, ou assim o pensava ela. É difícil separar o que se sabe do passado e aplicá-lo ao presente. O saber é algo que se vai coleccionando. E dele, ela sabia-lhe o nervosismo. Por fim o homem parou numa casa, e por ela entrou. Conservara os metros que a separam dele naquela caminhada, e quebrá-los era desconcertante. "Ele conhece a minha cara, sabe quem sou. Se me vê pela janela estou em sarilhos. Pior, vai suspeitar. E oh! como é criativa a suspeita!" pensava ela entre os passos. Tinha tudo a seu favor. Lua em quarto crescente finíssimo, a horas da lua nova e uma rua sem iluminação. Aguardou os minutos que julgou serem necessários para que um pessoa se pusesse confortável em própria casa. Avançou. Esgueirou-se por baixo de uma janela e compreendeu a loucura do que fazia. Subiu a cabeça lentamente onde se afigurava luz e olhou. Olhou em choque a normalidade da cena. Ali estava ele, sentado, junto à lareira. Aquecendo os pés. No entanto, um estranho barulho logo ecoou pela sala, atravessando o vidro da janela. Olhando mais de perto, ver-se-ia que após lendo uma página do livro recém-adquirido, a rasgava e a deitava no fogo. Recolheu a cabeça, como uma tartaruga diante do perigo e franziu as sobrancelhas em interrogação. Deslizou dali para fora e apressou-se a apagar o rasto da sua presença, correndo. Longe de lhe fornecer qualquer resposta condigna, acrescentou-lhe o peso da dúvida redobrada. A confusão instalada com que demorou a passar os dias. Embrenhou-se na leitura, a sua salvação que lhe garantiu paz temporária durante o processo. Um dia ouviu a porta da loja abrir-se, e deixar entrar a leveza da brisa matinal e o horror da presença temida. Deixou-se ficar sentada por mais que o costume, com a leitura interrompida, faltando-lhe a força nas pernas. Do seu ponto de vista, parecia mais forte. Revigorado até. Levantou-se e dirigiu-lhe um sorriso nervoso. Tudo por medo que tivesse sido vista naquela noite. Que ele estivesse ali para pedir explicações. "Bom dia. Como tem passado?" proferiu ele em tom jovial. "Bem... dentro dos possíveis. Que livro vai desejar hoje?" balbuciou ela. "Não. Hoje não vou pedir, vou dar-lhe algo." e entregou-lhe o livro anteriormente comprado. Capa preta. O mesmo. Ela olhou o livro em descrença, era a primeira vez que alguém fazia aquilo e tornou a olhá-lo nos olhos. Não pronunciou uma palavra. Recolheu o livro e analisou-o. Estava leve. Com vestígios de folhas rasgadas. Só lhe restava a capa. E uma folha em branco na qual se lia o seguinte manuscrito: "Não julgue o que sinto, por aquilo que não faço".

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