27.1.11

"País Modelo" de Agostinho da Silva

"Chegou-se sob o ponto de vista económico ao máximo que se poderia atingir dentro das condições actuais do mundo e se apresenta uma base de progresso de organização de tal ordem bem montada que todos os aperfeiçoamentos estão dentro não apenas das possibilidades da esperança, mas solidamente instalados dentro dos cálculos da certeza; fora o que é inevitável, desde que se conta com uma certa percentagem de anormalidade individual e com os restos das forças internas e externas de uma economia que tem o seu destino marcado (...)

Naturalmente, sob o ponto de vista político, tudo correu a par: a Dinamarca, e poderia transferir a observação para qualquer dos outros países escandinavos, embora a Noruega seja um caso um pouco à parte, conta hoje com um regime político que se aproxima bastante daquele grande ideal de não existir. A liberdade de expressão das opiniões é perfeita e ninguém acha, além de tudo, que possa estar muito mais certo do que o seu adversário; a maioria não é despótica, nem a minoria se sente humilhada; a realeza passeia de bicicleta pelas ruas e faz o possível por não ofender ninguém; de um modo geral, enquanto o dinamarquês engorda, o poder emagrece.

Os resultados ou acompanhamentos de tudo isto se vêem naturalmente no campo da cultura. A escola dinamarquesa é das menos pesadas do mundo e das que mais confia nas capacidades de estudo e invenção pessoal do homem; há escolas para crianças desde que se possam deslocar dos berços, onde de resto são atendidas por perfeitos serviços de puericultura; há escolas para o adulto que deseja completar seus estudos ou iniciar-se no domínio que ainda não conhecia; há escolas para que os camponeses possam aproveitar nalguma coisa útil o longo Inverno. A nação publica mais livros por cabeça do que qualquer outro país do mundo e não só os compra como os lê, e os entende; toda a gente está a par do que de mais importante se passa no mundo da cultura ou do progresso técnico ou da evolução social; e, finalmente, a Dinamarca classifica-se em primeiro lugar em números de prémios Nobel.

Ao mesmo tempo que todas estas maravilhas de segurança económica, de liberdade política e outras, e de cultura se montam, se utilizam e se aplaudem, ocorre um fenómeno sobre o qual seria conveniente meditar um pouco: ao mesmo tempo que, como era de esperar, o número de crimes de morte atinge, entre todos os países, o mínimo de frequência, o número de suicídios, se exceptuarmos o Japão, atinge o máximo. Feliz, bem dotado de tudo quanto precisa para viver, incluindo um corpo são, com todas as possibilidades de se educar, e não apenas para repetir o que os outros dizem, mas para criar beleza nova, como o atestam os descobrimentos científicos e o grande número de amadores de arte, tendo atingido sem violências revolucionárias tudo aquilo a que os outros povos só vão chegar por meio de ásperas batalhas e de desastres sem conto, o dinamarquês, ao atingir a plataforma de segurança, de liberdade e de expressão própria, se suicida; com a agravante de que se não suicida por meios violentos, digamos assim: a morte chega aos dinamarqueses por meio do soporífero; como se, na realidade, o essencial fosse dormir e esquecer a vida.

Se se averiguam as causas do suicídio, encontra-se em primeiro lugar o desgosto de amor. A liberdade de relações, que nenhuma sanção legal, social ou moral persegue, a facilidade do divórcio, a pelo menos aparente ligeireza com que o dinamarquês trata de todos os assuntos, parecem não lhe ter garantido nenhuma tranquilidade quanto a este ponto; os insatisfeitos se matam, os abandonados se matam, matam-se os exigentes e os fáceis, exactamente como em toda a parte do mundo, só com a diferença de que em número muito maior; e, para a morte, todos eles ou quase todos eles adormecem; talvez para sonhar; talvez nem sequer para sonhar; na Dinamarca nenhuma escola ensina a sonhar e não existem cooperativas de sonho.

Outra porção mata-se por tédio. Estes nem desgosto de amor têm consigo; perfeitamente alimentados, trabalhando um número razoável de horas em escritórios, fábricas ou escolas do máximo conforto, com seus barcos ou as suas bicicletas para passeio, com seus banhos de sol mal rompe a Primavera e seu aquecimento mal se anuncia Outubro, com o serviço doméstico extremamente simplificado pelas máquinas e pelo hábito das refeições ligeiras, com tráfico ordenado, com seguros sociais sem falha, com seus asilos em que os velhos são metodicamente arrumados para que esperem a morte, até com uma empresa especialmente organizada para sanar as dificuldades e satisfazer os desejos que podem ir desde um parceiro de jogo de cartas até um passeio de camelo, os dinamarqueses, no entanto, se matam; e, antes de se matarem, se queixam de aborrecimento; se queixam sorrindo, porque não é boa democracia os nossos fardos para as costas dos outros.

Abriria ainda um terceiro grupo de suicidas: o daqueles dinamarqueses que discretamente aludem perante o estrangeiro à sua condição de animais de jardim zoológico; afinal sucede com eles o seguinte; são o modelo da gente feliz; são o ideal a que tendem tantos outros países; são o protótipo da economia, da democracia e da educação; então é como se o resto do mundo, faminto, chagado de tiranias de todas as espécies, ignorante e desprezado pelos chamados cultos, tivesse ali um parque, uma reserva, onde ir admirar os que já chegaram ao estádio que ele deseja alcançar; embora na Dinamarca se trabalhe, tudo chega afinal como se fosse dado; e o único real trabalho do dinamarquês é o de ser dinamarquês, o de ter nascido dinamarquês e o de cooperar, naquilo que lhe cabe, com a maquina em que se encontra envolvido; este o trabalho; outra, porém, a dificuldade: manter-se vivo.

Talvez, no entanto, a Dinamarca esteja sendo uma coisa essencial para o mundo e tenha de ser contada entre os mártires de futuro, como sucede com outros povos que outras coisas estão demonstrando, além do mais a de que o sacrifício de Cristo continua hoje e repartido por toda a humanidade. (...)

Depois, a vida material é exactamente como o dinheiro, seu símbolo que apenas é bom enquanto serve para que se não pense nele. A segurança económica dos dinamarqueses deveria ser apenas o ponto de partida para outros empreendimentos que fossem além do banho de sol ou da pintura de faiança. Deveriam considerar o terem tudo como uma condição de liberdade tão importante como S.Francisco achou o não ter nada; no fundo, tanto faz ter como não ter: o que está tão ausente da liberdade de relações como dos asilos de velhos. O dinamarquês se fez sedentário quando o homem é nómada; se fez regrado quando o homem é fantasista; se fez funcionário, quando o homem não é funcionário, mas função: função de Deus.

Além de tudo, que direito tem o dinamarquês de ser materialmente feliz quando outros o não são? Que direito tem ele de ser, entre os países, o opulento quando os outros são miseráveis? Em que lhe tem servido o bem-estar para tornar menos incómodo o mal-estar dos outros? O que o dinamarquês construiu ele o construiu para si; de alguma forma, vive dos seus rendimentos; aposentou-se, e quem se aposenta beira a morte; temendo-a: daí o suicídio."

Agostinho da Silva em As Aproximações, Relógio D´Água, 1990

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