17.9.11

O culto da fuga #38

A descida tinha o ângulo ideal. Reclinando o pescoço ligeiramente para cima era o suficiente para que se desvendassem as maravilhas de me fazer desaparecer do meu campo de visão. A sensação de movimento já não era mais confirmada pelos usuais indícios visuais, como os sugeridos pela coordenação primitiva entre pernas e braços que teimam em reaparecer aos pares no canto do olho, enquanto caminhamos numa dança natural à qual não podemos cessar de assistir se quisermos saber onde pousam os nossos pés. Esta aparente ausência de membros criava uma experiência de quase despersonalização, e algo cinematográfica, como se eu mesmo fosse uma câmera livre de operador filmando uma cena de travelling
Mas para não correr o risco de arruinar o ensaio, tive de minimizar a forma como pendulavam os meus braços, o que era, desde já aviso, de alguma dificuldade tendo em conta as altas temperaturas do dia e o quão tentadora é a vontade de deixar que ganhem vida própria nessas condições. Especialmente numa descida. Por isso mesmo, e graças a algum pudor vindo da ideia do que passaria pela cabeça de um hipotético observador do meu andar algo maquinal, apenas experimentava isto em pequenas doses. Seria bom poder exercitar mais frequentemente a sensação de ser um observador imparcial, sem ter a experiência destruída pela consciência imediata dessa observação, tal qual um onironauta inexperiente perde a lucidez no sonho na excitação de a estar a ter. 
Ladeado por campos e campos de milho, sorri e continuei caminho por aquela estrada que levava a casa todo o viajante vindo da montanha.

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