30.9.10

Morrer na praia

Sem lhes ter sido dada qualquer oportunidade de terem um julgamento adequado, que determinasse a sua culpa ou inocência, tiveram todos o mesmo final, a mesma morte ordenada, manipulada e reforçada por interesses financeiros. Pena capital por fuzilamento. Homens e mulheres, uma delas grávida. Uns gritavam o desespero que lhes assolava a alma. Revoltavam-se pelas cordas que os prendiam a um destino fatal, daqueles que vêm na ponta de uma bala. Outros por sua vez, pareciam ignorar o aparato e as circunstâncias. Alguns daqueles corações batiam a ritmos próximos da morte. Tão suaves, tão leves, quase imperceptíveis. Dir-se-ia que esses, quando abatidos a tiro, já há muito haviam morrido. Resignação foi também algo que por ali pairou. A visão era paradoxal, era contraditória. Não fazia parte de cenários que consideramos de morte. Um dia lindíssimo, com resquícios de nuvens esquecidas pelo vento, desfeitas e redesenhadas a pincel num céu mais azul que o mar que rebentava pacificamente atrás das cabeças dos condenados. Mar esse que seria o paredão prolongado na infinitude. A linha formada pelos que morreriam, assim que fossem dadas as ordens, estava inevitavelmente bem delineada pelos troncos a que estavam amarrados, ao contrário da visível assimetria por parte dos atiradores. Parecia até que a excitação de uns marcava o seu avanço ou recuo. Na frente, do lado das armas, estavam também alguns rapazes. Crianças. Mal sabiam empunhar e aguentar um calibre daqueles. Meninos de guerra, de expressões sérias e vincadas em rugas de adulto. "Disparar!" ecoaram as palavras no ar. Por cada pessoa no tronco, existiam pelo menos dez atiradores, que longe de ter sido um estúpido acto de misericórdia com o objectivo de apressar o cessar de vida daqueles desgraçados, foi antes um grotesco jogo de pontaria. Havia certamente uma bala por cada poro na pele. E depois... um silêncio sepulcral. Não por muito. Os atiradores descarregaram no ar as balas restantes em jeito de celebração e gritaram, e riram muito. Os miúdos foram erguidos no céu pelos mais velhos, contentes sem perceberem bem porquê, riam também por contágio da gargalhada geral e doentia. Os mais velhos sentiam dupla satisfação: cumpriram as ordens do superior e sentiram ter dado por concluída a última e derradeira lição aos miúdos, que vinham à muito respirando a agressividade transpirada por eles. Do outro lado, jaziam os corpos dos supliciados no areal, em posições não muito diferentes uns dos outros. Assim como as pernas que cederam sob o peso do tronco morto, também as suas expressões se afundaram. Mas um deles, que não teve a cara desfeita pela chuva de tiros, conservara uma expressão peculiar. Um sorriso. Ou uma contracção qualquer semelhante a um sorriso. Essa foi a sua última expressão facial. Não foi aleatória. Foi dirigida aos seus familiares, que assistiram incrédulos ao desenrolar de toda a cena, sentindo uma incapacidade corrosiva, assim como tantas outras famílias infortunadas. Longe de entenderem o real significado daquele sorriso, guardaram-no até ao fim das suas vidas. Escorreu então uma lágrima de um dos olhos do morto.

2 comentários:

C.P. disse...

Deu-me arrepios, dos melhores textos que já li teus, senti-me lá, e ao ler via cada cena como uma cena de um filme.

André C. disse...

Muito obrigado :)