19.4.11

"A Metafísica do Amor"

"Se a perda da bem amada, pelo facto de aparecer um rival, ou pela morte, causa ao amante apaixonado uma dor que excede todas as outras, é justamente porque essa dor é de natureza transcendente e não o atinge apenas como indivíduo, mas fere-o na sua essentia aeterna, na vida da espécie cuja vontade especial está encarregado de realizar. Por isso o ciúme é tão cheio de tormentos e tão feroz; e a renúncia à mulher amada o maior de todos os sacrifícios. Um herói coraria ao romper em queixumes banais, mas não em queixumes de amor; porque neste caso não é ele que se lamenta, é a espécie. Na grande Zenóbia, de Calderon, há uma cena no segundo acto entre Zenóbia e Decius, em que este lhe diz:

Cielos, luego tu me quieres?
Perdiera cien mil victorias
Volvierame, etc.

Aqui, portanto, a honra, que até àquele momento suplantava qualquer outro interesse, foi vencida, logo que o amor, isto é, o interesse da espécie, entrou em cena e procurou obter a vantagem decisiva. Perante este interesse cedem a honra, o dever e a fidelidade, depois de haverem resistido a todas as outras tentações, mesmo à ameaça da morte. Da mesma forma, na vida particular não há ponto onde a probidade escrupulosa seja mais rara: as pessoas mais honestas e mais rectas, põem-na de parte neste ponto, e cometem o adultério a despeito de tudo, quando o amor apaixonado, isto é, o interesse da espécie, se apodera delas. Dir-se-ia até que julgam ter consciência dum tal privilégio superior que os interesses individuais nunca concederiam; justamente porque agem no interesse da espécie. Sob este ponto de vista o pensamento de Chamfort é digno de nota: "Quando um homem e uma mulher sentem um pelo outro uma paixão violenta julgo sempre que, sejam qual forem os obstáculos que os separem, um marido, os pais, etc., os dois amantes são um do outro pela natureza, pertencem-se pelo direito divino, não obstante as leis e as convenções humanas". Se houvesse protestos contra esta teoria, bastaria lembrar a espantosa indulgência com que o Salvador no Evangelho trata a mulher adúltera, quando presume a mesma culpa em todos os assistentes. A maior parte do Decameron parece ser, sob este mesmo ponto de vista, uma pura zombaria, um puro sarcasmo do génio da espécie sobre os direitos e os interesses dos indivíduos. O génio da espécie afasta e aniquila sem esforços todas as diferenças de categoria, todos os obstáculos, todas as barreiras sociais. Dissipa como uma leve palha todas as instituições humanas, tendo apenas em consideração as gerações futuras. É sob o império de um interesse de amor que desaparece todo o perigo e que até o ente mais pusilânime encontra coragem.
E na comédia e no romance com que prazer, com que simpatia seguimos os jovens que defendem o seu amor, isto é, o interesse da espécie, e que triunfam da hostilidade dos pais unicamente preocupados com os interesses individuais. Porque quanto mais a espécie é superior ao indivíduo, tanto mais a paixão aumenta em importância, em elevação e em justiça tudo o que a contraria.
O tema fulcral de quase todas as comédias, é a entrada em cena do génio da espécie com as suas aspirações e os seus projectos, ameaçando os interesses das outras personagens da peça e procurando destruir-lhes a felicidade. Geralmente consegue-o e o desenlace, de acordo com a justiça poética, satisfaz o espectador, porque sente que os desígnios da espécie são superiores aos dos indivíduos; terminada a peça retira-se muito consolado, deixando os enamorados entregues à sua vitória, associando-se à ilusão de que eles fundaram a própria felicidade, quando realmente só a deram em sacrifício ao bem da espécie, a despeito da previdência e da oposição dos pais. Em certas comédias, tenta representar-se o contrário, e conseguir a felicidade dos indivíduos, com o detrimento do fim da espécie: mas neste caso o espectador sente o mesmo pesar que o génio da espécie, e a vantagem dos indivíduos não chega para o consolar. Como exemplo, lembro-me de algumas peças muito conhecidas: La Reine de seize ans, le Mariage de raison. Nas tragédias que tratam de amor, os amantes sucumbem quase sempre; não conseguem fazer triunfar os fins da espécie de que eles eram apenas o instrumento: como Romeu e Julieta, Tancredo, Don Carlos, Wallenstein e tantas outras.
Um apaixonado pode cair no cómico tão bem como no trágico, porque em ambos os casos, está nas mãos do génio da espécie que o domina ao ponto de o arrancar a si próprio; os actos não são proporcionais ao seu carácter. Daí resulta, nos graus superiores de paixão, essa cor tão poética e sublime de que se lhe revestem os pensamentos, essa elevação transcendente e sobrenatural, que parece fazer-lhe perder completamente da vista o fim todo físico do seu amor. É porque o animam então o génio da espécie e os seus interesses superiores. Recebeu a missão de fundar uma série indefinida de gerações dotadas duma determinada constituição e formadas por certos elementos que só se podem encontrar num único pai e numa única mãe; só essa união pode dar existência à geração determinada que a vontade de viver exige. O sentimento que o amante tem de proceder em circunstâncias de uma importância tão transcendente, transporta-o a uma tal altura acima das coisas terrestres e mesmo acima de si próprio, e reveste-lhe os desejos materiais duma aparência de tal modo imaterial, que o amor é um episódio poético, mesmo na existência do homem mais prosaico, o que o torna por vezes ridículo. Essa missão que a vontade, zelosa dos interesses da espécie, impõe ao amante apresenta-se sob a máscara duma felicidade infinita que ele espera encontrar na posse da mulher que ama. Nos graus supremos da paixão esta quimera é tão brilhante que, não se podendo atingir, a própria vida perde todo o encanto, e torna-se tão falha de alegria, tão e insípida, que o tédio que ela causa excede mesmo o medo da morte; o desgraçado abrevia às vezes voluntariamente os seus dias. Neste caso, a vontade da espécie, ou melhor, esta última vence a vontade individual, que se o amante não pode proceder na qualidade de representante dessa vontade da espécie, desdenha proceder em nome da sua vontade própria. O indivíduo é um vaso demasiado frágil para conter a aspiração infinita da vontade da espécie concentrada num objecto determinado. Não tem, assim, outro desfecho além do suicídio, por vezes até o duplo suicídio dos dois amantes; a não ser que a natureza, para salvar a existência, deixe aparecer a loucura que tapa com o seu véu a consciência duma situação desesperada. Todos os anos vários casos confirmam esta verdade.
Mas não é só a paixão que tem por vezes um desenlace trágico: o amor consumado também conduz mais frequentemente à infelicidade do que à felicidade, porque as exigências do amor, em conflito com o bem estar pessoal do amante, são de tal modo incompatíveis com as outras circunstâncias da sua vida e os seus planos de futuro, que minam todos os seus projectos, as suas esperanças e os seus sonhos. O amor não está só em contradição com as relações sociais, mas também o está muitas vezes com o temperamento íntimo do indivíduo, quando se fixa sobre as pessoas que, fora das relações sociais, seriam odiadas pelo amante, desprezadas e mesmo aborrecidas. Mas a vontade da espécie tem um tal poder sobre o indivíduo, que o amante cala as suas repugnâncias e fecha os olhos aos defeitos daquela que ama: passa levemente sobre tudo, desconhece tudo, e une-se para sempre ao objecto do seu amor, de tal modo o fascina essa ilusão, que se desvanece logo que a vontade da espécie se encontra satisfeita e deixa atrás de si um companheira detestada para o resto da vida. Só desta forma se explica como os homens sensatos se unem a harpias e desposam megeras, e não compreendem como puderam fazer semelhante escolha. Eis por que os antigos representavam o amor de olhos vendados.
Pode até dar-se o caso de um enamorado reconhecer claramente os vícios intoleráveis de temperamento e de carácter da noiva, que lhe fazem antever uma existência atormentada, pode mesmo sofrer cruelmente, sem que tenha a coragem de renunciar a ela:

I ask not, I care not,
If guilt´s in the heart;
I know that I love Thee,
Whatever thou art.

Porque, no íntimo, não procura o seu próprio interesse, embora o imagine, mas o de um terceiro indivíduo, que deve nascer desse amor. Esse desinteresse, que é em tudo o exemplo da grandeza, dá aqui ao amor apaixonado essa aparência sublime, e torna-o um digno objecto de poesia. Enfim, acontece que o amor se concilia com o ódio mais violento pelo ente amado; por isso Platão o comparou com o amor dos lobos pelas ovelhas. Este caso apresenta-se quando um apaixonado, a despeito de todos os esforços e de todos os pedidos, não consegue por preço algum fazer-se ouvir.

I love and hate her
Shakespeare, Cymb., III, 5"

Arthur Schopenhauer in A Metafísica do Amor

2 comentários:

Super Sónia disse...

o amor frita-me o cerebro.

André C. disse...

a mim também. parece que às vezes até lhe sinto um cheirinho a esturro, daquele que já passou muitas vezes pelo mesmo óleo.